
O relatório de análise da violência associado ao desporto (RAViD) foi amplamente noticiado, nos últimos dias de 2023, pela comunicação social. Só temos realmente pena que nem todos o tenham lido na íntegra.
Isto porque, entre os títulos chamativos, poderíamos ler no Diário de Notícias que os “Incidentes da I Liga aumentaram”, n’A Bola que a “pirotecnia causou metade dos incidentes em 2022/2023” e na TVI que o “fantasma do hooliganismo ressurge”. Poderíamos ainda, tal como o fizemos o ano passado, perguntar a que interesses servem esses mesmos títulos noticiosos, ou em que sentido promovem ambientes desportivos saudáveis. Aqueles que todos culpam os adeptos, mas nunca hesitam em publicar títulos destes.
Talvez tenhamos algum vislumbre para respostas, quando dissecamos, por exemplo, o editorial de José Manuel Delgado, no jornal A Bola; aqui, poderíamos ler que, apesar do estimado esforço da direção de um clube em tornar o seu recinto “num espaço moderno, funcional e atrativo para as famílias”, não se poderia compreender a suposta inexistência de um “comportamento mais assertivo quando se trata de criar condições para deshooliganizar”. Talvez a higienização social das nossas bancadas, tal como já o dissemos anteriormente, não seja uma hipótese assim tão descabida. Talvez, nas palavras de arautos como o estimado José Manuel Delgado, reforcem um alarmismo desnecessário e contraproducente, marcado por uma visão ideológica e específica que procura naturalizar a ideia de que o futebol não é das famílias (historicamente errado) e que a resposta a comportamentos menos desejáveis passa apenas pela modernização dos recintos desportivos e pela criminalização. Afinal de contas, é tão simples que nem sabemos porque motivos existem Convenções Europeias neste sentido….
Nós, preferimos ser sérios e objetivos e desconstruir não só as peças mediáticas em torno do RAViD, mas também o próprio relatório em si – porque nos damos ao trabalho de o ler e interpretar.
Desde logo concluímos que, ainda que tenha existido um ligeiro aumento dos incidentes registados na sua globalidade, há uma série de entrelinhas que necessitam de ser iluminadas.
Em primeiro lugar, aos que gostam de apresentar números, devemos frisar que, em bom rigor, não só os incidentes na modalidade do futebol, referentes à Liga 3 e à 2ª Liga, diminuíram quando comparamos com o anterior relatório, como uma série de tipologias de incidente, referentes à 1ª Liga, também sofreram uma notável diminuição. Exemplo – o “dano” cai de 171 para 102 incidentes; o “arremesso de objetos” de 77 para 32 incidentes e o “incitamento à violência, racismo e xenofobia” de 78 para 16 incidentes (e aqui, não sabemos onde andam os arautos da defesa do combate à violência no desporto para louvar estas significativas descidas!).
Em segundo lugar, observamos que a dita “violência” retratada no referido relatório diz mais respeito a “posse e uso de artefactos pirotécnicos” -71,95% dos incidentes na 1ª Liga dizem respeito a esta categoria e 86,6% das interdições de acesso a recintos desportivos recaem, de novo, sobre essa tipologia. O que quer isto dizer? Que, se estivéssemos em França, onde a pirotecnia é legal, provavelmente se constataria que não existem casos de violência assim tao gritantes. Mas isso talvez tirasse o poleiro e as bandeiras a muitos.
Em terceiro lugar, existe ainda uma introdução de novas categorias registadas pelo PNID: o “incumprimento do dever de usar correção, moderação e respeito”; a “violação de medidas de interdição” e as “infrações do promotor relacionadas com a segurança”.
E aqui sim, nós, que vamos a eventos desportivos, devíamos estar realmente preocupados – como é que foram registadas 190 “infrações do promotor relacionadas com a segurança”, das quais 109 correspondem a clubes de futebol na 1ª Liga (futebol profissional!).
Num país que ratificou a Convenção de Saint-Denis, e tendo uma Liga de Futebol Profissional que apregoa que colocar os adeptos no centro da sua dinâmica de gestão…. talvez este apontamento dê que pensar.
Em quarto e último lugar, salutamos a “proatividade policial”, mencionada no relatório, que parece ter sido chave para chegarmos mais perto dos números reais da “violência no desporto” em Portugal. Desses mesmos números, apesar do imenso trabalho que todos temos pela frente, registamos com algum apreço a diminuição dos incidentes graves nas competições nacionais. Mas naturalmente se há mais meios humanos, é bastante lógico que os números aumentem. O que não quer dizer necessariamente que o fenómeno da violência tenha, por si só, aumentado.
As conclusões não são difíceis – era só preciso que aqueles que andam sempre com o mote da violência no desporto o tivessem lido e o tivessem conseguido interpretar.